sexta-feira, junho 27, 2008

O rosto e o gosto

É que ele tinha aquele cheiro de siga-me.
E olhos de entendo.
Ouvidos de conte-me.
E a boca...
E a boca?

domingo, junho 22, 2008

O diabo.

Eu estava na pré-alfabetização. A escolinha se chamava Menino Jesus de Praga. Era bem escolinha, daquelas de quando a gente é criança. Eu estudava a tarde e lembro que gostava muito de ir pra lá. Mas o que eu mais lembro era do medo que me dava a uma certa hora, todos os dias. Era mais ou menos depois do recreio. A tia Armandina, a professora, escolhia um aluno da sala e dava a ordem. O escolhido saía e voltava, e eu tremia. E me morria. Lembro como se fosse hoje do meu coração disparar, de engolir em seco e da minha saia azul de crochê – ela ia até o joelho eu a adorava, eu era meio maria-mijona. Teve uma vez que a tia não quis me deixar ir ao banheiro e eu não agüentei. Disso não ficou nenhum trauma, nem apelido, apenas fiz xixi na saia e na sala e nem me lembro se fizeram piada. Só lembro da cara da tia dizendo pra minha mãe que eu não pedi pra ir ao banheiro. Os adultos mentiam, eu descobri naquele dia. Mas o que ecoou no meu ouvido por muito tempo foi a ordem que vinha depois do recreio: vá buscar o diabo!
Meu Deus! A Tia mandava buscar o diabo todos os dias. E tinha Jesus no nome da escola! E eu não tinha coragem de contar na minha casa que a escolinha era uma fachada pra alguma coisa do mal! Era assustador. Principalmente porque parecia que nenhum dos meus outros coleguinhas tinha medo. Eles só podiam ter sido enfeitiçados. Como não ter medo de sair da sala pra ir buscar o diabo? Mas o pior era ficar na sala enquanto o diabo não vinha. Acho que foi um dos meus primeiros medos: aos 6 anos, tive medo do diabo.
Até o dia juízo final. A tia me escolheu. Olhou pra mim e disse: vá buscar o diabo. Eu olhei pra ela como quem implora clemência. E seus olhos eram de quem me dava um presente. Eu nunca tinha visto aquele olhar. Das outras vezes eu olhava para a minha mesinha em prece: tenha piedade, papai do céu. Mas daquela vez eu tinha que olhar pra ela. Milagrosamente me lembrei que quando meus colegas voltavam da missão demoníaca nada acontecia. Ou será que eu estava tão absorvida pelo medo que não conseguia perceber? Não sei. Só sei que fui. Ao me ver parada no corredor (da escola, mas parecia o da morte) a tia gritou docemente: na secretaria. Sínica, pensei. Na verdade aos 6 anos eu não conhecia essa palavra, mas deve haver uma correspondente no vocabulário infantil para ela. E fui obediente à secretaria buscar nada menos que o diabo. Pensei nos meus brinquedos, na minha mãe, no meu pai, nos meus irmãos que tinham sorte de serem mais novos e não irem pra escola e na minha saia azul de crochê. Até mesmo as crianças pensam em suas coisas importantes quando acham que é o fim. E era. Eu já estava encostada no balcão da secretaria. Sem delongar o sofrimento, instintivamente estendi a mão e disse:
- A tia tá pedindo o diá...
- O quê?
A arcanja do inferno era surda. E eu tinha medo de falar aquela palavra, minha mãe lavaria minha boca com sabão se soubesse que eu disse aquilo. Mas o que travou foi outro medo: como eu ia levar o diabo? Tentei mais uma vez dizer:
- O di...
E ainda com a mão estendida a mulher da secretaria colocou uma pastinha azul na minha mão e não olhou mais pra mim.
Mecanicamente me pus pra fora dali. O diabo não era tão feio quanto eu imaginava, era uma pastinha azul.
Meio tremendo eu o entreguei a professora sem que ela percebesse meu nervosismo e sentei na minha carteira suando frio. Fiquei aliviada. Com a mesma cara que faziam os meus coleguinhos quando voltavam de suas cruzadas. Aí a Tia fez a chamada. Não lembro se foi na mesma hora ou se foi alguns dias depois que eu entendi. Mas o que o ajudante do dia ia buscar na secretaria era o DIÁRIO. Não sei se a professora tinha problema de dicção ou se minha imaginação já transformava tudo naquela época. E fiz do diário o diabo. E aos 6 anos de idade, vivi meu primeiro inferno.