terça-feira, novembro 28, 2006

Desnacimento

Ela descobriu que ia desnascer. Sempre soube que aquilo poderia acontecer, mas a notícia a pegou de surpresa. Tinha nove meses a partir de então, e sabia que poderia acontecer depois dos sete meses, com alguns acontecia aos oito. O fato é que havia chegado a sua hora. Lembrava-se de quando sua mãe descobrira que estava grávida. Do dia da notícia, que também a pegou no susto, teve exatos nove vezes para se acostumar com a idéia, comprar roupinhas, escolher o nome, arrumar seu quartinho. Agora, era ela quem recebia a notícia de que ia desnascer, em nove meses no máximo. A expectativa não era nada boa como nos nascimentos. Dava um frio na barriga, uma sensação de que havia ainda muita coisa a fazer e de que nove meses eram pouco. E lembrasse de que ouvira falar que antigamente as pessoas não tinham nove meses para desnascer, desnasciam de uma hora para outra. Sem avisos, sem preparo. Achava aquilo muito injusto. Se todos esperavam os tais meses para nascer, seria natural esperar os meses para desnascer também. Não poderia ser assim, de uma hora para outra. Mas ela estava aflita, nunca imagina que desnasceria tão nova. Talvez fosse melhor desnacer de repente mesmo. Sem medos, angústias... mas se fosse assim ela sabia que acabaria deixando coisas por fazer. Era bom que tivesse os nove meses. Ela bolava mil coisas pra tentar evitar o inevitável. Se para nascer teve que apostar corrida com um monte minhoquinhas rabudas e cabeçudas, era só não se esforçar tanto, fingir que corria , mas ir ficando. Não... não haveria nada de fecundação, a desfecundação era bem mais simples. Ela apenas iria indo aos poucos para um lugar diferente. Alguns achavam que depois de desnascer, todos voltavam a ser sementes em algum lugar ou que apenas acabaria tudo, que seria o nada. Não, para ela não. Qual o sentido de tudo? Para que aprender tanta coisa, amar, sofrer se quando desnascesse tudo de acabasse? Sabia que continuaria em algum outro lugar. Que quando desnacesse aqui, ia nascer em um outro lugar. Como o barquinho que se afasta de um cais, mas que quando some no mar passa a ser visto por quem está do outro lado. Para ela isso era o desnacer. Mas não queria. Não queria deixar pessoas e sonhos. Mas se consolava por saber que tinha nove meses para se despedir, de todos, de tudo. Ao contrário dos nascimentos, que inchavam a barriga das mães e denunciavam para todos que em breve mais alguém aumentaria as estatísticas populacionais, o desnacimento era discreto. Quem ia desnascer não murchava a barriga, não encolhia, não voltava a ser criança, não era tachado, apenas sabia que caminhava para uma estrada finita. E que cada dia, era um dia a menos. Se quisesse poderia contar para os outros. Mas todos sempre se apavoravam muito com a notícia, começavam a olhar com piedade, a bajular muito... Era melhor deixar para contar na última hora. E assim ela soube que iria desnacer. Apenas soube. Passou a olhar o mundo de um jeito diferente. Apaixonava-se pelas coisas pequenas e simples, pelo nascer do sol, pelo seu desnascer e nascer de novo. E perto das pessoas amadas sentia uma vontade de chorar e as abraçava. Era gentil como a muito tempo não era. Pedia desculpas por algumas palavras ásperas que disse, pelas que não disse também. Tinha que se desculpar com tanta gente. E tinha que aproveitar o tempo. Tinha que dizer umas coisas para algumas pessoas. Coisas que ficavam entaladas na garganta e que não poderiam desnascer com ela. E disse. As pessoas estranhavam seu comportamento. Até suspeitavam que aquelas atitudes eram típicas de quem ia desnascer, mas eram discretos e aqueles que a amavam também passavam a ser doces, sentiam que também tinham pouco tempo. Ela pegou sua lista de amores mal resolvidos e foi resolver alguns deles. Muitos ela deixou para lá, incrível com muitos perdiam a importância e ela ria de si mesma pelas lágrimas que havia derramado. Mas com alguns que ela precisava falar. Coisa simples como: “Você sabia que eu já fui apaixonada por você?” Talvez roubar um beijo e ir embora, talvez apenas sorrir e ver no que ia dar. Nossa! Como tinha beijos reprimidos. E amores para viver. Se declarou para um deles. Teve coragem. E deu certo. Mas ela não podia ficar lá, com um amor e uma cabana. Tinha muita coisa para fazer, muitos lugares para conhecer. Foi viajar o mundo. Pegou um mega empréstimo. Ninguém sabia que ela ia desnascer mesmo. E foi. Tinha visto num filme que um cara que se descobria desnascido lamentava não ter ido ver índios no Xingu. Será? Não, não tinha vontade de ver índios no Xingu. Mas tinha vontades doidas, como mergulhar lá no fundo do oceano, saltar de pára-quedas, lavar vidraças altíssimas dependurada em uma corda. E ler. Muitos livros que queria ter lido, mas que deixou para depois. Quando soube que ia desnascer parou de dormir. Lia avidamente. Tanta coisa para aprender. Tomou uns porres também com grandes amigos. Sabia que ia sentir falta deles. E os nove meses se passaram. O seu caderninho com a enorme lista de coisas a fazer estava praticamente completo. Havia dito muitos “Eu te amo”, muitos pedidos de desculpas, muitos beijos e abraços, lido muitos livros, visto muitos filmes e sóis (nascendo e desnascendo), havia feito algumas loucuras que sempre teve vontade de fazer, conhecido lugares e pessoas. Achava que estava feliz. Ainda havia coisas que ela queria fazer. Estava ainda mais apaixonada pela vida aqui. Nove meses era mesmo muito pouco. Mas percebeu que fez a maioria daquilo que queria. E a hora estava chegando. Podia sentir as contrações. Sentia medo pelo desconhecido, pela vida nova que achava que ia começar. Reuniu os amigos em uma grande festa de despedida, deixou também uma carta com as percepções que só tem quem vai desnascer. E foi ficando transparente. Sentindo o corpo leve. Todos ao seu redor se emocionaram. Sabiam o que estava acontecendo. Não haveria corpo gelado e inerte, nem velórios como acontecia antes, quando as pessoas desnasciam sem saber. Ela apenas ia sumindo aos poucos. E desnasceu.

4 comentários:

André Luiz Neves disse...

Indios no Xingu? hehe Como eu digo, soh mudam os versos. Nao podemos escolher nascer, tao menos desnascer. Mas o importante eh sonhar com essas possibilidades pra fazer valer o que esta entre essas duas pontas, a vida.

André Luiz Neves disse...

Continue sonhando, minha querida.

Anônimo disse...

Muito muito bom Su!!!

Sussy Côrtes disse...

Poxa... vcs leram mesmo essas letrinhas miudas??!!!
;)