sexta-feira, maio 09, 2008

De uma época, de uns meninos.

(A gente não guarda mais as coisas na gaveta. Elas ficam jogadas numa pasta inofenciva escondida no Meus Documentos. Em meio a muita poeira achei esse texto lá. Foi escrito há alguns séculos.)

Meninos e bumerangues

Essa é a história de duas famílias, que embora não tivessem nenhuma ligação, acabaram por se cruzar em um trecho da vida que não mais ofereceria caminho de volta. Diferente do bumerangue que Betinho jogava forte quando criança e que parecia que nunca mais iria voltar, mas que sempre voltava para suas mãos. E Betinho corria, junto com Carlinhos, seu irmão mais novo, entre bumerangues, bolas, livros, brincadeiras e afagos da família.
Não muito longe dali, Zeca, um outro menino via o bumerangue dos Betinhos e Carlinhos no céu, e achava graça porque aquele brinquedo sempre voltava para o lugar de onde tinha saído. E subia bumerangue e subia pipa e ouvia risadas e via livros e via abraços. E Zeca, também corria, mas era descalço, seus pés chutavam as pedras que viam no caminho e se machucava, mas não tinha afagos e curativos. Nunca aprendeu a decifrar as letrinhas dos livros e a ter habilidade com o lápis. Ao contrário, teve muita habilidade com as armas, tinha medo, mas a realidade à sua volta o convenceu de que elas eram essenciais. Betinho também aprendeu a lidar com armas, cresceu e tornou-se o Coronel Alberto Fraga. Já Carlinhos tinha pavor delas.
Em um desses dias em que a vida nos desarma e surpreende, o Coronel Alberto Fraga, que há 25 anos saia armado de casa todos os dias, a fim de proteger a sociedade e desarmar marginais, se surpreendeu com um tiro que não ouviu. E o Zeca, aquele menino que não foi pra escola, foi um dia pra Feira do Rolo, e lá, onde rola de tudo, conseguiu uma arma. Foi assim que saiu às ruas com aquela arma em punho e foi rápido que ele puxou o gatilho. Não precisava, mas ele não pensou, apenas atirou. E um corpo caiu ao chão. O corpo de Carlinhos, aquele que tinha pavor de armas e que tinha um irmão coronel da Polícia Militar. Nada mais o traria de volta. E Zeca correu com a arma em punho e o som do tiro ainda zunindo em sua alma. Mas ele tinha que correr, ninguém ia querer saber se ele nunca tinha ido à escola, que sua família não teve oportunidades e que o ensinaram a puxar o gatilho, mas não colocaram um lápis em sua mão. Quem era aquele rapaz que em um instante tirou a vida daquele jovem? Ninguém sabia. A perícia diria de qual arma saiu o tiro. Mas de nada adiantaria, na Feira do Rolo ninguém pediu documentos do Zeca para lhe vender a arma.
Um sentimento de impotência invadiu o peito do Coronel Alberto Fraga. Onde ele estava que não pode proteger seu irmão? Estava protegendo outros irmãos, esposas e filhos. Quantos tiros estariam sendo disparados por armas sem rosto enquanto ele chorava sob o peito inerte de seu irmão? Não podia saber ao certo, mas sabia que tantos outros Zecas continuariam a comprar armas como quem compra doces, que tantos outros Carlinhos, que tinham medo de armas, continuariam a ser vítima delas e que Coronéis como ele, não poderiam estar em todos os lugares.
O coronel lembrava-se do bumerangue que sempre voltava, e esperava em vão que seu irmão voltasse também. E o Zeca corria e lembrava-se do bumerangue que via no céu fazendo o caminho de volta. Lembrou-se então que tinha que voltar à Feira do Rolo. Precisava de mais munição.

2 comentários:

Mariana Paiva disse...

armas e lápis com poder de desenhar linhas da vida e mudar o rumo de tantas histórias.

bjão

Cris disse...

Sussy, mas não é bom mexer de vez em quando numas coisas velhas? Seja em caixas, gavetas, ou em pastas "empoeiradas" no "Meus documentos".
Ah, a partir de hoje fico, como vc disse sábado, "cara-de-pau"! e aceito sugestões do que deve ser mudado, ou deletado.

Bjos!!! adoro vc!