quarta-feira, abril 08, 2009

Ladeira moral

Luiz subia a ladeira como se a ladeira não existisse.
Empurrava uma carreta lotada de papelão molhado pela chuva.
Me arrependo de ter olhado-o de novo.
Com tanta coisa pra roubar, tanto ódio para nos mostrar, Luiz preferiu catar papelão, colocar na carreta e vender. Luiz não vende sua alma ao demônio por dois motivos: o primeiro motivo é piegas, o segundo é porque o Gabiru não se interessa.
Mas que diabos!, por que esse homem não vai roubar? De onde ele tira coragem para enfrentar essa chuva sarcástica? A mesma chuva que me trancaria dias em casa, lavava a alma de Luiz.
Por que olho pro pobre diabo e sinto inveja do seu caráter? Eu que me pego fazendo concessões às meias verdades em nome do ganha pão.
Por que não sacou uma arma qualquer e me ameaçou? “Leva tudo, Luiz. Leva minha fraqueza.”
Por que não me deu seu olhar pedinte, sofrido? Por que ao invés disso, pisou firme como um soldado romano, convicto do seu caminho?
Por que não me deu a chance de satisfazer meu desejo egoísta de ajudá-lo?
Luiz subia a ladeira. A ladeira não subia nele.
Minha consciência está pesada, molhada pela chuva. Luiz, me ajuda a subir essa ladeira, por Deus.

(André Barreiros)



Luiz empurrava com vontade a carreta de papelão. Já começava chover. Pequenos pingos d’água se misturavam aos seus grandes pingos de suor. O choro do céu não o abateu. Luiz tinha pressa, não tinha lenço. Tinha que correr. Olhou pro alto e a luz do sol quase o cegou. Luiz e a luz. Parecidos se não fosse por um i. Se não fosse por um se. Se Luiz não tivesse roubado o guarda-chuva da moça do ponto de ônibus. Ele viu quando ela o encostou no banquinho. Luiz viu, sentiu. Mas num daqueles minutos de bobeira ou de repentina lucidez, Luiz se lembrou do sonho do menino papelão: ver de cima o papel encardido se molhar, assistir tudo do alto, de pé. Protegido da chuva por uma sombrinha. Uma sombrinha! De verdade! Ele sempre cobriu seu sonho escondendo a cabeça no pedaço de papelão. Escondeu do sol, do vento e do estômago. Escondeu dos olhos que não o viam. Mas naquele dia, Luiz não se escondeu o suficiente e viu cores. Uma sombrinha colorida de uma moça que se coloria e que não viu os dedos do catador. Os olhos de Luiz estavam debaixo daquele arco-íris, vendo as gotinhas de chuva respigar uma a uma sobre ele, sem que sua cabeça se molhasse. O barulho da chuva agora era sussurro, não era grito. E Luiz subia a ladeira com pressa, escondendo debaixo do papel o seu desenho de menino. Tinha que chegar do outro lado antes da chuva passar. Ou teria sido em vão.

(Sussy Côrtes)

2 comentários:

Anônimo disse...

André seguia disparando letras. Uma atrás da outra e se agarrando, como quem se segura antes de saltar de paraquedas. Mas o texto é bom. Despenca frente aos olhos da gente. Sem medo.
O olhar, faminto, percorre freneticamente de um canto ao outro da linha.
E salta também.
Como pode ele desafiar as letras desse jeito?
Adrenalina. Sem parar nem fraquejar. E minha fome se atira, saciada e quieta.
Ficam os efeitos colaterais: um sorriso hipnotizado no olhar e um abrir coreografado nos lábios.

Me ajuda a não ter medo de me atirar. Me ajuda?


Mariana, a Paiva.

ANDRÉ BARREIROS disse...

mariana, traduzir o sentimento da faca no pescoço é fácil. estive refém desse sentimento. precisa escrever para me libertar. obrigado.