Míseros meio metro do chão não representariam perigo se eu não fosse tão estabanada e se não chovesse tanto nos últimos dias. Aquele chão molhado parecia a terra querendo zombar de mim, esperando só hora de me ver de joelho roxo. Por isso, eu seguia com todo o cuidado. Até o dia em que descobri um outro caminho e nele, uma abóbora.
Ela estava lá no fundo, longe. Parecia ter sido esquecida pela Cinderela, Gata Borralheira ou Branca de Neve, não me lembrava ao certo. O fato é que era uma linda carruagem de abóbora que me atraia como se um fosse imã puxando minha pele de ferro.
Assim, magnetizada, segui sem tirar os olhos dela até que, de tão perto, pude ver suas teias de aranha. Eu me comovi, ela era uma abóbora abandonada num mundo sem fadas. Aonde andaria Cinderela? (Sim, àquele passo eu já tinha certeza de que a mocinha da história tinha esse nome). Fui embora com vontade de comer cabutiá.
Eu que não sou boba, nunca mais saltei o barranco e todos os dias me encontrava com a abóbora na hora de voltar para casa.
Hoje, o professor de Jogos Teatrais (não sei se já contei, mas essa história se passa numa escola de artes) nos pediu para que saíssemos da sala de aula e fossemos caminhar. Tivemos 15 minutos para observar, para ver o mundo com olhos de expectador. Incrível como raramente olhamos. Eu, que sempre chego atrasada, vi tanta coisa nesses 15 minutos! Fiquei impressionada com todos aqueles detalhes que saltavam aos meus olhos e pelos quais eu passava todos os dias sem perceber. Música por toda parte, sapatilhas e mais sapatilhas, gente pendurada em tecido, no teto, no ar, tanta coisa ao mesmo tempo! Foi numa dessas andanças do olhar que um corredor me sugou. Era o da abóbora! Segui imediatamente em sua direção para observá-la com calma como se aquela fosse a nossa chance. (Não é todos os dias que se tem 15 minutos). Tudo o que eu queria era olhar para a abóbora. Fiquei alguns instantes parada diante dela. Era tão linda, tão rica em detalhes, tão de verdade. Pensei nas mãos que a confeccionaram e nos palcos por onde ela já havia passado. Tive um impulso de entrar e sentar ali dentro. Mas me contive. Como uma criança com medo de fazer arte, olhei para os lados receosa de que alguém lesse meu pensamento e brigasse comigo. Vai que abóbora era de alguém? E se eu fosse muito pesada para ela? E se ela desmanchasse? E se tivesse cheia de fungos (seu interior era de tecido acolchoado). E se?
Aí lembrei das frases mais repetidas nas aulas nos últimos dias: “Se joga! Se joga! Não racionaliza! Não racionalizada!” Pronto. Eu estava lá dentro. Para mim foi uma travessura. Nunca fui do tipo encapetada, era a irmã mais velha – aquela que tinha que dar o exemplo – e de repente eu estava ali, me jogando e ignorando tudo o que eu havia racionalizado.Não sei conto que por um segundo pensei que ela estava flutuando e ouvi um sshhhhss... Melhor não!
Fiquei lá dentro da abóbora por alguns minutos, olhando as pessoas que passavam sem me notar, sorrindo com cara de moleque custoso para as que se surpreendiam comigo naquele lugar. Mais que isso, senti que minha alma sorria também e se arrepiava.
Vive uma espécie de transe dentro daquela abóbora. Uma euforia nova com cheiro de corredor vencido (e também de mofo). Para quem não acredita em conto de fadas, ir dormir com o da abóbora não é nada mal. Boa noite.
3 comentários:
Eu também entraria na abóbora, assim como já subi em muitas vassouras. Não é todo dia que se encontra uma estacionada por ai. Heheheeh
Algo se transformou dentro e fora da abóbora.A menina agora tinha libertado sua Cinderela. Às avessas.
Boa Sussi, se você for produzir um texto para cada exercício seu blog ficará incrível hein!
Parabéns pelas palavras, continue enviando-nos suas notificações.
Bjos
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