terça-feira, maio 29, 2007

O livro de cabeceira

Ela sentiu que perderia a memória. Não, ela havia pressentido aquilo. E teve medo. Seus olhos umedeceram e ela lembrou de quando quis um dia não ter lágrimas. De como quis calar seus canais lacrimais para que não ouvissem seu grito molhado. Mas hoje, quando realmente tinha motivo para chorar, pensava em como seria se não tivesse as lágrimas para colocar um pouco daquilo tudo pra fora. E foi com uma dessas lágrimas que ela teve a certeza de que um dia não se lembraria do motivo do seu choro. E chorou de pranto e de medo de se olhar no espelho e de ver-se em cicatrizes sem histórias. Ela então começou a anotar em um diário atrasado tudo o que lembrava dos seus melhores anos. As letras ocupavam as linhas na mesma ordem que apareciam em sua memória. Ela escrevia, chorava, ria, escrevia. Cada momento se lembrava de uma coisa e corria a anotá-la no seu livro de bolso. Ela recuperava o passado e perdia o presente construindo o que seria seu livro de cabeceira para quando tudo se fosse. Mas e se com a memória se fosse a habilidade de juntar as letras? E se perdesse a visão? Teria alguém a ler para ela? E se roubassem o caderno? E pior: se ela não lembrasse de onde o guardou? Ela fechou os olhos buscando achar outro baú para guardar seu tesouro. Quando os abriu não sabia o que aquele caderno fazia em suas mãos. Não reconheceu o lugar que estava, nem aquele rosto repetido em tantas fotos. De onde vinham aquelas cicatrizes no espelho? E uma lágrima lembrou de escorrer.

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